Roberto Mendes: Na Base do Cabula

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Esse álbum é daqueles que caem no nosso colo na hora certa, como que apressados em nos ensinar alguma coisa muito urgente. No meu caso, salvou uma palestra.

Eu estava num trem a caminho de Paris, bastante nervoso para dar minha primeira palestra em português depois de tanto tempo vivendo e estudando na Alemanha. A palestra era sobre patrimônio imaterial e música, e eu tinha escolhido utilizar o samba de roda e a viola de machete do Recôncavo Baiano como exemplos para ilustrar a minha tese de que um pouco de análise musical podem ajudar a entender melhor o patrimônio musical e desenvolver estratégias mais inteligentes e sustentáveis para preservá-lo sem que ele perca seu dinamismo e a capacidade de se transformar. Afinal, preservar uma tradição musical tem pouco em comum com preservar um monumento histórico de pedra e metal.

Era Setembro de 2019, e o Leonardo Mendes, que eu havia conhecido há pouquíssimo tempo em Berlim, postou o novo álbum do pai nas redes sociais pouco antes da minha partida. Eu baixei o álbum para ouvir no trem, sem saber o que me esperava.

Roberto Mendes traz para o violão a essência da tradição da viola de machete do Recôncavo Baiano, que são as fórmulas conhecidas como “toques de machete” (saiba mais aqui), padrões que envolvem certos motivos melódicos e estruturas rítmicas cíclicas. Escutando as faixas “Mãe Senhora” e “O Samba antes do Samba” e “Linda Morena” é possível perceber que o acompanhamento do violão nas duas faixas é muito semelhante, variado apenas de maneira muito sutil. Isso está longe de ser falta de criatividade do compositor, pelo contrário. Nestas três faixas especialmente, Roberto Mendes explora a riqueza rítmica aparentemente de uma mesma fórmula que aparece em três versões que apenas diferem em poucas notas e acentos rítmicos. Dessa riqueza que está nos detalhes e passa despercebida a ouvidos desatentos, Mendes constrói canções muito diferentes e belíssimas.

“O Samba Antes do Samba”, que me parece a peça pivotal deste álbum, ainda se presta a dar uma aula sobre o patrimônio imaterial em questão. Fala dos sons do Recôncavo, do tabuleiro de cana, das palmas e do cabula – ritmo essencial no repertório dos atabaques do candomblé, também conhecido como “samba de caboclo” – para dizer que o samba já existia antes do samba, e que “só depois o telefone tocou”, em referência a “Pelo Telefone”, de Donga, a primeira gravação fonográfica a ser registrada como “samba”. Não vem ao caso comentar aqui que “Pelo Telefone” é muito mais um maxixe que um samba, mas o nome ficou gravado para sempre em nossa memória coletiva como o primeiro samba.

Ou seja, minha palestra ganhou um forte argumento: O que Roberto Mendes faz ao transferir para seu violão a linguagem própria dos toques de machete é preservar o patrimônio intangível relativo a este instrumento de uma maneira criativa, captando sua essência – o seu pensamento musical – e aplicando-no a outro contexto. Dentro da complexidade da tarefa de proteger e fomentar o patrimônio intangível, me parece que esse trabalho nos mostra um excelente caminho, o de buscar entender a essência de uma manifestação musical – nada mais é a análise – e aplicar este conhecimento na própria criação musical.