Rítmica Africana I
Introdução
Seja bem-vindo ou bem-vinda a esta série de aulas sobre rítmica africana. Este é um projeto embrionário, que deve crescer com o tempo, abrangendo ainda outros temas. Portanto, fique à vontade para fazer comentários e sugestões!
Para começar, é necessário definir alguns conceitos. Primeiramente, quando trato aqui de “rítmica africana”, ou de “música africana”, estou falando não só de músicas tradicionais do continente africano, mas também de uma diversidade de culturas afro-diaspóricas, ou seja, de herança africana. Naturalmente, trato aqui de uma imensidão de culturas distintas, cada uma com suas tradições, instrumentos, cantos danças etc. No entanto, os princípios de teoria e análise musical que apresento aqui podem ser aplicados à maioria das culturas musicais africanas e afro-diaspóricas. Seja no samba brasileiro, na rumba cubana, na música dos tambores iorubas da Nigéria, no sabar do Senegal, nos arcos musicais, xilofones e lamelofones de diversas culturas da África subsaariana, as ferramentas analíticas apresentadas a seguir podem ajudar a entender como representantes dessas tradições tão distintas tratam a questão rítmica em seu fazer musical. Por motivos práticos, utilizarei aqui o termo “música africana” para, de maneira coloquial e resumida, me referir ao coletivo das culturas musicais africanas ou de herança africana.
Ritmo
O que chamo aqui de ritmo poderia ser entendido como tudo aquilo em música que diz respeito essencialmente ao tratamento do tempo. A música – deixarei aqui a dança subentendida – é uma arte temporal e permite que elementos sonoros, bem como os movimentos, sejam organizados no tempo. Culturas musicais africanas, como veremos a seguir, têm maneiras interessantes e matematicamente fascinantes de fazê-lo. Entender como isso ocorre nos ajuda a compreender melhor estruturas musicais que não são facilmente compreendidas somente pela escuta musical – ainda que atenta – e que não se deixam traduzir com fidelidade mediante a utilização da notação musical ocidental.
Teoria e análise
Os conceitos aqui apresentados são teorias acerca da rítmica africana, ou seja, são ferramentas analíticas desenvolvidas por musicólogos, as quais se aplicam a posteriori a certo material musical existente. Quer dizer, ainda que tentem refletir o processo de pensamento envolvido em certo fazer musical, se valem de uma terminologia externa a ele. Em outras palavras, não se trata de ensinar aqui conceitos necessários para o desenvolvimento de uma prática musical – como por exemplo é necessário conhecer as notas musicais para se tocar uma partitura de Bach –, mas sim de apresentar instrumentos que nos são úteis ao analisar um toque de berimbau ou de atabaque, ou a dança de uma passista, indo além da superfície que nos é apresentada aos sentidos e nos aprofundando em suas estruturas.
Pulsação elementar
Muitas vezes, quando tentamos escrever ritmos africanos ou latinos utilizando a notação musical tradicional, com barras de compasso, figuras rítmicas como a colcheia ou a semicolcheia, pontos de aumento ou diminuição, ligaduras e pausas, nos deparamos com certa dificuldade e esses ritmos logo nos parecem de difícil leitura e, logo, de difícil análise. No entanto, boa parte dessa dificuldade está no fato de que o pensamento rítmico africano não é plenamente compatível com o sistema de notação ocidental. O conceito da pulsação elementar apresentado neste capítulo oferece uma alternativa ao sistema ocidental.
o tempo como um colar de pérolas
A ideia é simples. Imaginemos um colar de pérolas, todas elas iguais em tamanho. No entanto, algumas são brancas, outras negras. Unidas por um fio que as transpassa uma a uma, formam um colar que, quando fechado, tem o formato de um círculo.
Nesta metáfora, cada pérola equivale a um pequeno instante de tempo que, um após o outro, se sucedem. Todas as pérolas são iguais – possuem o mesmo valor temporal – porém podem ter “cores” distintas. No nosso colar de pérolas musicais, cada pérola pode ser um toque em um tambor, uma batida de palmas, o som de um apito, um passo de dança ou mesmo um instante de pausa. Por enquanto, não nos interessa aqui a duração de um som, apenas o momento em que foi emitido – por exemplo o instante em que a mão percute um tambor, ou que a palma de uma mão encontra a outra.
Representação gráfica
Normalmente, músicas de herança africana são organizadas em ciclos, ou seja, baseando-se em formulas rítmicas que se repetem – certamente com variações – voltando ao seu início cada vez que chegam ao final. Quem já tocou um toque carreteiro em um tamborim ou o partido alto em um pandeiro sabe que, na maior parte do tempo, há um modelo rítmico que se segue e que sempre se repete.
A representação gráfica de um chocalho em um ritmo básico de samba poderia então ser dada como na figura ao lado. Cada X corresponde a um movimento do chocalho, com as setinhas indicando a direção do movimento. Supondo que a tocadora decida acentuar cada primeiro e quarto movimento do chocalho (dividindo o ciclo em quatro partes iguais), podemos adicionar o sinal >, que já nos é conhecido da literatura musical ocidental, para indicar a acentuação, obtendo uma representação bastante simples da forma como o instrumento é tocado.
Assim, cada “pérola” é um movimento do instrumento e logo também um som emitido. Cada movimento ocupa a mesma porção de tempo, porém com direção (de movimento) e sons distintos.
Este modelo é na realidade uma simplificação do sistema TUBS (Time Unit Box System), de Phillip Harland (veja fontes abaixo) e é largamente utilizado na literatura sobre música africana, especialmente por Gerhard Kubik.
*Veja as sugestões de literatura no final da aula II.