Rítmica Africana II
Time-line Patterns
Os chamados time-line patterns ou, em português, linhas rítmicas ou linhas guia são estruturas peculiares na música africana. Neste capítulo, mostrarei algumas de suas propriedades utilizando de exemplo a linha rítmica de 12 pulsações, uma figura tão emblemática na música da África ocidental que ficou conhecida na literatura como “yoruba standard pattern”. A mesma figura rítmica pode ser encontrada em toques de bembé de Cuba ou na chamada “seis por ocho” (em referência ao compasso binário composto) ou nas linhas de gã ou agogô do candomblé brasileiro, especialmente nos toques vassi, alujá de Xângo, ibi de Oxalá e no toque de Ogum, entre outros. Na África Ocidental, sobretudo na Nigéria, essa figura está presente até mesmo no universo da música pop. Normalmente, essa figura é executada por idiofones de som agudo e penetrante (sinos, claves, um tambor de pequenas dimensões, uma garrafa de vidro, etc.), servindo de guia para os outros instrumentos. No entanto, pode estar diluída dentro de estruturas mais complexas executadas, por exemplo, por um violão ou xilofone.
Imaginemos para isto uma campana simples, como um gã no candomblé, ou um agogô de apenas uma boca. Cada golpe da baqueta no instrumento é representado por um X, e cada pausa por um ponto, obtendo a figura à direita. Para imaginar o som desta figura, basta imaginar uma pulsação constante, como o tic-tac de um relógio, e percutir, por exemplo com uma caneta sobre a mesa ou cantando a onomatopeia “quén”, a cada X da figura, permanecendo em silêncio ou marcando a pausa vocalmente com “hum” ou outro som para cada ponto da figura (“quén-hum-quén-hum-quén-quén-hum-quén-hum-quén-hum-quén”). Fazendo isso por poucos minutos e aos poucos trocando a sílaba “hum” pelo silêncio, já é possível internalizar bem a figura e a notação aqui proposta.
Time-line patterns no samba
Olhando para o universo da música brasileira, logo percebemos que linhas rítmicas como essa podem ser encontradas em diversos lugares. Uma das figuras rítmicas mais importantes do samba, o padrão conhecido como telecoteco, por exemplo, é uma delas. Quando executado no tamborim, o telecoteco, em sua versão mais simples, que chamo aqui sem nenhum rigor terminológico de “telecoteco 1”, se divide em batidas com a baqueta na pele do tamborim (representados aqui com X) e batidas com o dedo médio da mão que segura o instrumento na parte de trás da pele (representados aqui pelo ponto). Muitas vezes, canta-se a onomatopeia “telecoteco” quando se ensina esta figura a alguém que não a conhece, facilitando sua memorização. Gerhard Kubik dá a essa metodologia didática tipicamente africana o nome de “notação oral”. Novamente, é possível imaginar o som de um tamborim tocando o telecoteco cantando as sílabas que equivalem a cada pulso elementar, conforme a figura.
Muitas vezes percebemos e tocamos esta mesma linha em uma segunda variante (“telecoteco 2”) que, no entanto, não deixa de ser a mesma figura do telecoteco, porém iniciada em outro ponto. A representação circular deste time-line pattern nos permite visualizar essa diferença.
A matemática dos time-line patterns
Uma das maiores vantagens de se utilizar o sistema de notação aqui apresentado é que ele nos permite visualizar algumas estruturas matemáticas “escondidas”, que não são percebidas apenas escutando, tocando ou mesmo escrevendo estas figuras rítmicas fazendo uso da notação ocidental. Em seguida veremos algumas dessas propriedades, utilizando como exemplos os time-line patterns de 12 e de 16 pulsos apresentados acima.
A rigor, Gerhard Kubik define os time-line patterns como figuras que alternam apenas um som (como um agogô de apenas uma boca) e pausas. Em seus trabalhos (veja fontes abaixo), Kubik cita diversos time-line patterns de diferentes comprimentos de ciclo (o número de pulsos elementares, as “pérolas” do colar), sempre pares, sendo 12 ou 16 pulsos o mais comum. A proporção entre pulsos percutidos (X) e pausas (.) é sempre tal que a quantidade de um será sempre a metade do comprimento do ciclo +1, e do outro a metade do comprimento do ciclo -1. No exemplo do yoruba standard pattern, com 12 pulsos de comprimento, temos no total 7 “X” na figura (12/2+1) e 5 “.” (12/2-1), ou seja, uma proporção de 7 para 5. No exemplo do telecoteco, temos 9 “X” (16/2+1) para 7 “.” (16/2-1). Vemos assim que o standard pattern e o telecoteco são “parentes”, pois se baseiam na mesma razão matemática. Porém a semelhança vai além disso, como será demonstrado a seguir.
Distribuição uniforme
Novamente farei uso de uma metáfora para entendermos a instigante estrutura matemática por trás dessas estruturas.
Imaginemos uma mesa redonda com 12 cadeiras ao redor, nas quais devem se sentar os membros de um grupo que, no entanto, consiste em apenas sete pessoas. Estas então decidem se posicionar da maneira mais uniforme possível, para que o espaço não pareça tão vazio. Depois de muito experimentar, terminarão por perceber que a forma mais uniforme de se distribuir sete pessoas em 12 cadeiras ao redor de uma mesa segue exatamente o modelo do standard pattern. Da mesma maneira, um grupo de 9 pessoas teria de se sentar seguindo o modelo do telecoteco se quiser se distribuir uniformemente ao redor de uma mesa com 16 cadeiras.
Outro exemplo: a escala diatônica
(Este capítulo exige algum conhecimento em teoria musical ocidental, porém não é vital para compreender o restante do curso)
Curiosamente, os time-line patterns africanos não são as únicas estruturas musicais que seguem esse modelo matemático. Outro exemplo bem conhecido é a distribuição dos semitons em uma escala diatônica, facilmente visualizada na organização das teclas pretas e brancas do teclado de um piano (7 teclas brancas e 5 pretas por oitava).
As escalas diatônicas consistem sempre de 7 notas, as quais são separadas entre si por um intervalo de um tom inteiro ou de um semitom. Na escala de Dó Maior, por exemplo, temos as notas Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si-(Dó), com o intervalo de semitom aparecendo entre as notas Mi-Fá e Si-Dó. Observando o teclado de um piano, nota-se que entre estas notas são as únicas que não são separadas entre si por uma tecla preta. Se utilizarmos novamente o sistema de X e ponto para representar a escala diatônica – no caso de Dó Maior – veremos que o resultado novamente segue o modelo do standard pattern.
Podemos seguir com esta comparação estendendo-a para os modi da música modal. Sabemos, por exemplo, que a estrutura intervalar do modo eólio (ou menor) equivale às teclas brancas do piano tocadas de Lá a Lá, ou que o modo dórico pode ser obtido tocando-se as teclas brancas de Ré a Ré. Percebe-se aí que a estrutura de tons e semitons nos diversos modos eclesiásticos é sempre a mesma, tomando-se, no entanto para cada modo um ponto distinto de partida, ou, em linguagem mais adequada, tomando-se uma nota específica como referência – a chamada finalis – do modo em questão. Já vimos acima, no exemplo do telecoteco, aqui apresentado em duas variantes, que o mesmo pode acontecer nos time-line patterns. Tanto o telecoteco “1” como o telecoteco “2” se baseiam na mesma estrutura de pulsos percutidos e pausas, no entanto, cada um toma um pulso elementar distinto como ponto de referência.
Assim, fica claro que da mesma maneira que um modo eclesiástico é definido por uma estrutura de intervalos e uma finalis (além, claro, de outros diversos elementos os quais deixo de fora desta comparação), assim também uma grande parte dos ritmos africanos podem ser definidos por uma estrutura de pulsos percutidos e pausas – o time-line pattern – bem como um pulso elementar de referência, muitas vezes denominado pivot point na literatura de língua inglesa.
Esta comparação não estaria completa, contudo, sem levar em consideração os fatores que fazem com que esses pontos de referência, em ambas as estruturas, sejam percebidos como tais. Em ambos os casos isso se dá por meio do contexto musical. Nos modos eclesiásticos, o formato das melodias, cadências específicas, bordões e harmonias permitem que um determinado modo seja percebido como tal, uma vez que fazem com que a finalis do modo em questão apareça de acordo com sua função dentro da estrutura modal, ou seja, como nota de repouso ou de finalidade. Da mesma maneira, em ritmos africanos ou de herança africana, por exemplo no samba, o contexto musical determina a maneira como será percebido o time-line pattern. No caso específico do samba, é a batida do surdo – a chamada marcação – a principal referência para se determinar a posição do telecoteco, o time-line pattern do samba.
leituras recomendadas
Gerhard Kubik, Theory of African Music (2 volumes), Chicago 2010.
Nina Graeff, Fundamentos Rítmicos Africanos para a Pesquisa da Música Afro-Brasileira, online.