Kiko Dinucci e o violão antropofágico
Não sei se foi porque eu passei a quarentena estudando este instrumento, mas vejo o violão cada vez mais como uma chave importante para entender o pensamento musical na música popular brasileira. Ouvindo o novo e incrível Rastilho do violonista e compositor paulistano Kiko Dinucci, esse pensamento novamente se aguçou, e me caiu a ficha da referência que estava há tempos procurando.
Da mesma maneira como Dino colocou o bombardino no sete cordas, João Gilberto resumiu a batucada do samba dando um instrumento pra cada dedo (a começar pelo surdo no polegar), Gil decodificou os atabaques do Ilê Aiyê e Roberto Mendes trouxe a viola-de-machete do Recôncavo Baiano para as seis cordas, Kiko Dinucci experimenta com ritmos do folclore afro-paulista, como o Jongo e o Batuque.
O resultado é surpreendente, e o disco dá vontade de sair pesquisando sobre essa cultura musical que ainda não alcançou o reconhecimento do público da mesma forma que por exemplo a musicalidade do candomblé ou do maracatu. É um album de violonista, e certamente vai aguçar a curiosidade de muita gente querendo saber como tocar essa ou aquela “batida”, pois talvez seja isso mesmo que esse álbum, com tanta cara de pesquisa, queira.
Ouvindo Kiko, me caiu uma ficha emperrada há tempo pra tentar entender o papel do violão no Brasil. Achei a referência nos primórdios do modernismo oswaldiano: o violão é o garfo e a faca desse “por quilo” antropofágico que é a música brasileira. É nele que o Brasil se escuta, se imita, se simplifica, se resume e se distila, pra depois se reinventar. Como Dino 7 Cordas, João Gilberto e Roberto Mendes, pra cometer a injustiça de não citar tantos outros, Kiko escuta o Brasil, o desmonta e remonta no violão. Na verdade, dá até pra dizer que esse processo já começa lá atrás, quando a viola-de-machete “janta” a técnica de indicador e polegar dos lamelofones africanos, num processo que já comentei aqui.
Sobra só mesmo agradecer ao querido amigo (violonista e paulistano) Silvino Almeida, que me recomendou essa pérola.